Distingo e exemplifico dois modos de ser do retrato no universo da ficção, apontando para a sua relação com o processo da figuração.
Primeiro: o retrato como dispositivo descritivo da personagem, em contexto narrativo. Recorro às Viagens na minha terra para ilustrar esta funcionalidade. Lembro o retrato de Carlos que se encontra no capítulo XX (“O oficial era moço, talvez não tinha trinta anos” e assim por diante), mas sobretudo convoco o testemunho e a autoconsciência de quem o elabora: “O oficial… – Mas certo que as amáveis leitoras querem saber com quem tratam, e exigem, pelo menos, uma esquiça rápida e a largos traços do novo ator que lhes vou apresentar em cena. // Têm razão as amáveis leitoras, é um dever de romancista a que se não pode faltar.”
Segundo: o retrato como objeto ficcional, pintado, desenhado ou fotografado e presente numa ação narrativa antes de mais como elemento decorativo. Podendo interagir com as personagens (caso extremo: O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde), o retrato chega a induzir sentidos que superam largamente aquele propósito decorativo. Outro exemplo, também garrettiano, mas agora em contexto dramático: os retratos que aparecem na abertura do segundo ato do Frei Luís de Sousa.
De forma algo esquemática, pode dizer-se que é a primeira das funcionalidades mencionadas (o retrato como modelação discursiva e descritiva da personagem) que expressamente determina e condiciona a figuração. Mas indireta e subtilmente o segundo também o faz, em função do cruzamento entre ambas as funcionalidades – a descritiva e a decorativa – e também de fatores e de contextos genológicos, periodológicos e genericamente histórico-culturais. Abrindo desde já pistas de reflexão: os tempos literários do romantismo, do realismo ou do naturalismo são muito fecundos quanto ao culto de uma verdadeira estética do retrato; já o tempo literário pós-naturalista, incluindo a poética e a prática literárias do simbolismo, retrai e redimensiona a funcionalidade descritiva do retrato, quando é posta em causa a possibilidade de a literatura, enquanto linguagem, representar o real ou então quando a fragmentação da personagem (por exemplo, a personagem modernista) inviabiliza a fixação da sua identidade.
(de “Retratos de personagem: para uma fenomenologia da figuração ficcional”, em elaboração)