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A personagem revista

            Em Navegação de Cabotagem. Apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei (1992), Jorge Amado  compôs um grosso volume de memórias elaboradas de forma singular, com avanços e recuos temporais, sem outra aparente ordenação que não sejam as evocações  que vão chegando à cabeça do escritor. O subtítulo da obra é, deste ponto de vista, esclarecedor.

            Num dos textos do volume, Amado enfrenta a questão que muitas vezes tenta e não raro atormenta os ficcionistas: como responder ao desafio das adaptações. Ou seja: como se posiciona o escritor relativamente à “reescrita”, por processo de transmediação, do seu texto para outro suporte e para outra linguagem (cinema, televisão, rádio, banda desenhada, etc.), sendo sabidas duas coisas. Uma: que o meio de chegada pode acolher  géneros narrativos próprios (folhetim radiofónico, série televisiva, telenovela). Outra: que aquele processo de transmediação tem na personagem um elemento diegético que levanta interrogações e requer soluções específicas.

            Diz Amado: “Leitores me interrogam, por carta ou de viva voz, querendo saber o que penso das adaptações de romances de minha autoria para o cinema, o rádio, o teatro, a televisão”.  E a isto acrescenta duas afirmações significativas. Primeira: “A adaptação de um romance para qualquer outro meio de comunicação é sempre uma violência contra o autor”. Segunda: “Ao escrever um romance realizo trabalho artesanal, sou um artesão tentando alcançar a arte literária”, sendo certo que, pelo seu lado,  “cinema, rádio, televisão são o oposto do artesanato, são indústria e comércio” (Navegação de Cabotagem.  3ª ed., Rio de Janeiro: Record, 1994, pp. 256-257).

            Perdendo controlo sobre a violência que lhe fazem, o escritor (que, todavia e para que conste, autoriza a adaptação) perde, ao mesmo tempo, capacidade para condicionar as personagens. São os interesses combinados do espetador e da lógica da produção que passam a comandar a personagem:  “um simples figurante se cai no goto do público pode passar à personagem principal, as tramas se desdobram em função da audiência” (p. 257). Acontece assim também porque a personagem, pela sua natureza e pelo seu modo de figuração, consente e mesmo estimula “desvios” como aquele.

Jennifer Jones em Madame Bovary, de Vicente Minnelli (de 1949)

Flaubert, que consabidamente viveu com algumas das suas personagens relações  tensas e que muito trabalhou para dominar todos os aspetos da representação ficcional, não pôde autorizar ou desautorizar adaptação cinematográficas ou televisivas. Mas recusou adaptações teatrais de Madame Bovary; e recusou também ilustrações (muito apelativas, para a indústria do livro de então), com palavras que traduzem a consciência dos problemas levantadas, no que toca à personagem, pelo processo da transmediação: “Jamais me ilustrarão as obras enquanto eu for vivo, porque a mais bela descrição literária é devorada pelo mais pobre desenho. A partir do momento em que um tipo é fixado pelo lápis, ele perde esse caráter de generalidade, essa concordância com mil objetos conhecidos que fazem dizer ao leitor: ‘Eu vi isso’ ou ‘Isso deve ser’”. E continua: “Uma mulher desenhada assemelha-se a um mulher, eis tudo. A ideia fica então fechada, completa, e todas as frases são inúteis, enquanto uma mulher escrita leva a pensar  em mil mulheres” (carta a  Ernest Duplan, 12 de junho de 1862).

Carlos Reis

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