Monthly Archives: Outubro 2014

José Saramago e a sobrevida das personagens

Memorial do Convento não se apresenta ao leitor como um monumento linguístico disponível para mera contemplação ou para exibição de um autor mais ou menos fossilizado na escrita. O leitor que a obra convoca descobre-se ativamente envolvido num ato comunicativo de construção ficcional; os seus pensamentos, reações ou discursos encontram lugar no mundo possível do texto. Através de atos cognitivos que apreendem e processam diversos aspetos da construção da personagem, o leitor procura a correspondência desta com os seus modelos de conhecimento do mundo empírico. O significativo potencial semântico das personagens selecionadas promove frequentemente novas leituras, que universalizam o seu sentido e que se concretizam na transcodificação da personagem noutras linguagens e noutros suportes, noutros media. (…)

No atual contexto de exploração da transmedialidade narrativa, a obra de Saramago, com a sua permanente reclamação da presença operante do leitor, vê-se interpelada ao diálogo com outras artes, através de recriações, remediações e adaptações a outras linguagens estéticas como o teatro, a música e, como salientamos, a pintura. É por via dessa intermedialidade, sempre problematizadora, que as personagens de Memorial do Convento têm conhecido frequentes migrações, algumas de transposição ontológica significativa, o que lhes permite emergir em novos espaços para além do texto que as configurou. A sobrevida das figuras saramaguianas é a consumação daquilo que o próprio Saramago desejava: a conservação da sua memória (delas e certamente de si) – “ao menos deixamos os nomes escritos, é essa a nossa obrigação, só para isso escrevemos, torná-los imortais”; “Se estamos falando dele, nasce…”

Pretendemos, deste modo, corroborar que “a obra literária ‘vive’ na medida em que atinge a sua expressão numa multiplicidade de concretizações” (Roman Ingarden), assim como esperamos contribuir para preservar essa vida, pois “esquecer é a morte definitiva e se lográssemos não esquecer, embora saibamos que não é possível guardar tudo na memória, isso será prolongar a vida e os nomes das pessoas, dotá-las de outra existência. Talvez, ao fim e ao cabo, seja essa a tarefa mais importante do escritor de ficções” (José Saramago) e do leitor de ficções também.

(Júlia Figueiredo, A Figuração das Personagens de Memorial do Convento.

Dissertação de mestrado. Coimbra: FLUC, 2014, pp. 8-9).

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Figurações do insólito

A minha intervenção no II Congresso Internacional Vertentes do Insólito Ficcional [28 a 30 de abril de 2014] parte de reflexões anteriores, agora desenvolvidas com rumo próprio. As bases de trabalho e os parâmetros aqui adotados serão os seguintes:

  1. A investigação levada a cabo no âmbito do projeto “Figuras da Ficção” (Centro de Literatura Portuguesa/FCT). Destacam-se nela, com relevância para a presente proposta, os conceitos de figura e de figuração. Estas são noções que, revelando um potencial de ponderação teórica considerável, estarão implícitas no decurso da presente intervenção.
  2. O investimento em conceitos correlatos, diretamente motivados pela problemática do insólito. Nesse quadro, ganha importância própria a noção de ficção do insólito.
  3. Um dos princípios adquiridos na conferência “Figurações do insólito em contexto ficcional” (I Congresso Internacional Vertentes do Insólito Ficcional). Segundo esse princípio, é pertinente falar no insólito em confronto com a ficção a que chamamos realista. Para ser adequadamente descrito, esse insólito deve ser observado tendo-se em atenção a lógica do realismo e mesmo, de certa forma, a necessidade de se agir contra essa lógica. Penso aqui sobretudo na personagem, como categoria central do processo realista; e acrescento que o destaque concedido a essa categoria levará a equacionar a noção de típico e a categoria do tipo.
  4. O princípio segundo o qual o insólito literário se manifesta contextualmente. Ou seja: o romantismo, o barroco, o realismo ou o surrealismo definem-se como contextos periodológicos que explicam diversas manifestações de insólito. Isto significa, noutros termos, que importa analisar o insólito, tendo-se em atenção a sua condição histórica, bem como os reajustamentos que ele sofre, em função de mudanças contextuais projetadas na evolução literária.

Ainda que orientando-se para casos específicos e para a categoria da personagem literária, a abordagem do insólito faz-se num arco discursivo amplo, sendo muito produtiva a tomada de consciência dessa amplidão. Naquele arco, é possível assinalar aspetos e práticas muito distintas. As que a seguir se indicam são meramente ilustrativas, mas devem ser trazidas a esta análise.

Chamo a atenção, antes de mais, para aquilo que designo como a dimensão do idioma. Essa dimensão permite apreciar uma semântica do insólito que opera em função de mutações que ocorrem no interior de cada língua e dos seus lentos movimentos históricos. Julgo ser particularmente expressivo evocar aqui o que ocorreu e ocorre no português e no espanhol, pelo facto de se tratar de dois idiomas cuja geografia e cuja história registam algumas afinidades importantes. E contudo, enquanto em português o termo insólito e os seus cognatos foram remetidos para uma zona linguística relativamente rarefeita, em espanhol, o vocábulo pertence a uma “família” que tem curso na linguagem de uso corrente.

(continuar a ler)

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