Em 2009, Lídia Jorge publicou um conjunto de textos congraçados pelo título Contrato sentimental. Inserido numa coleção identificada pela designação “Portugal futuro” e surgido num ano problemático (…) da nossa história recente, o livro respondia ao desafio de inverter aquele que muitas vezes é o rumo da reflexão dominante entre nós, ou seja, a que problematiza um país virado para o passado. Em vez disso, Contrato sentimental questiona o tempo a vir, o que tem consequências, no plano temático. (…)
Detenho-me na dimensão genológica que esta digressão em dez etapas envolve, correspondendo não tanto aos dez cantos de uma certa epopeia, mas aos momentos de desenvolvimento de um processo em que notei (…) incursões protonarrativas. Em termos sintéticos, afirmo que, na construção do seu Contrato sentimental, Lídia Jorge, ao oscilar entre a crónica e o ensaio, convida a estabelecer ligações difusas com a sua produção propriamente literária, como se textos cronísticos e digressões ensaísticas fossem uma antecâmara da ficção. Ou, por outro lado, um seu epílogo.
A ligação ao relato tem uma outra explicação, da ordem da lógica modal do discurso. Refiro-me ao impulso ficcional que pontual ou alargadamente reconhecemos na crónica e no ensaio, um impulso não raras vezes concretizado nas incursões narrativas que ambos aqueles géneros consentem e até solicitam. Aliás, a literatura e muitos escritores dos nossos dias continuaram, à sua maneira, um legado com origem nos grandes romancistas do século XIX; nestes, a crónica (tal como o conto, claro) e o ensaio foram um laboratório narrativo e ficcional, esboçando personagens, episódios e cenários que o romance ampliou e aprofundou, indo, como é evidente, muito além daquelas tentativas preambulares.
Esse efeito de continuidade observa-se nalguns dos nossos romancistas mais destacados da atualidade (José Saramago, Mário de Carvalho, José Cardoso Pires, António Lobo Antunes ou Valter Hugo Mãe, por exemplo) e na atividade cronística e ensaística que protagonizam ou protagonizaram. Confirmamo-lo neste Contrato sentimental de Lídia Jorge, a isto juntando que, recentemente, a escritora publicou um conjunto de crónicas em que reuniu textos apresentados na rádio (o medium é outro, mas manteve-se a matriz cronística). Nesse volume, intitulado Em todos os sentidos, reafirma-se a vocação para o género em causa; e se outras razões não houvesse para o trazer aqui, esta bastaria: numa das crónicas, “O signo da brevidade”, lemos uma admirável reflexão, com pendor ensaístico e em “triangulação”, acerca do conto, da crónica e do romance.
(C. Reis, “Contrato Sentimental: a la búsqueda del sentido futuro”, Turia. Revista Cultural, nº 136, nov.-fev. de 2020; extrato).
[Lídia Jorge está representada no Dicionário de Personagens da Ficção Portuguesa com as personagens Carminha e Carminha Rosa (O dia dos prodígios), Eva Lopo e Helena de Tróia (A costa dos murmúrios)]