Tendo sido descrita e sistematizada pelos estudos narrativos, no quadro da teoria geral da ficcionalidade (v.), a transficcionalidade é um fenómeno muito antigo, se bem que, em contexto pós-modernista e na era digital, se acentuem os desafios que ela levanta e as possibilidades da sua concretização. Assim, se é certo que “a proliferação de reescritas, na narrativa do final do século XX, é facilmente explicável pelo sentido de passadismo que permeia a cultura pós-moderna e pela fixação do pensamento contemporâneo na natureza textual da realidade” (Ryan, 2008: 386), também é certo que já nos primórdios da literatura moderna é possível observar práticas lúdicas, a partir de mundos ficcionais pré-existentes: “Encontramos expansões no século XVII com continuações do Dom Quixote, modificações no século XVIII com versões alternativas do Robinson Crusoe [como Vendredi ou la vie sauvage, de Michel Tournier], e transposições pelo menos desde o princípio do século XX, em obras como o Ulysses de James Joyce” (Ryan, 2008: 386).
Estão já explícitas, nestas palavras, três modalidades distintas de transficcionalidade: por continuação, por modificação e por transposição. Tais modalidades assentam numa proposta de abordagem “do potencial semântico da reescrita”, designadamente no caso das “reescritas pós-modernistas de obras literárias clássicas” (Dolezel, 1998: 206); trata-se, por meio dessas reescritas, de dialogar com protomundos ficcionais canónicos, levando à questionação do cânone literário estabelecido, através da construção de mundos alternativos, com inerente revisão axiológica. (…)
Note-se, por fim, que o potencial da transficcionalidade não se esgota nas narrativas verbais e nem mesmo nas da chamada era eletrónica (rádio e televisão). Pela sua natureza, as narrativas digitais (v.) evidenciam uma volatilidade e uma “leveza” (na expressão consagrada de Italo Calvino) que as predispõem para movimentos transficcionais às vezes radicais; por outro lado, o universo mediático da Internet, com a sua vocação para ações imersivas por parte do utilizador e para o culto da interatividade (v.), dá lugar a exercícios transficcionais amplamente participados. A rede abre “um espaço público onde tanto amadores como profissionais podem inserir as suas criações. Séries de TV populares, a exemplo de filmes e romances de culto como Harry Potter, dão origem a numerosos websites, onde os fãs trocam comentários, comunicam com autores e com produtores, sugerindo intrigas possíveis para futuros episódios, mandam e-mails para personagens ou para atores que as interpretam e postam histórias baseadas no mundo ficcional do texto que forma o objeto de culto” (Ryan, 2008: 401).
“Personagem” [extrato], em C. Reis, Dicionário de Estudos Narrativos [próxima publicação por Almedina, Coimbra]