Personagens em estado latente

A literatura eletrónica é constituída por diversos tipos de texto e propõe ao leitor diferentes formas de leitura. Um dm_matlitúnico texto pode exigir diversas técnicas de abordagem. O conhecimento reunido pela literatura impressa torna-se vital para a análise de obras de literatura eletrónica. Porém, para analisar uma obra de literatura eletrónica, este poderá ter de aliar-se ao conhecimento produzido dentro das artes performativas, artes visuais ou computação. Sabemos que a literatura não é um sistema fechado e que aceita diferentes tipos de texto, desde a carta ao fragmento. Sabemos também que a literatura está em permanente reformulação. A literatura eletrónica surge na continuidade de um processo de introspeção catalisado pela própria literatura e, sendo assim, as suas manifestações devem ser cuidadosamente analisadas.

No caso da literatura eletrónica, o leitor pode conhecer as personagens de diferentes maneiras, isto é, uma personagem pode ser apresentada no decurso de um jogo, através de documentos dispersos pela rede ou de lexias que se sobrepõem no nosso ecrã. Os autores de literatura eletrónica desafiam frequentemente as expectativas do leitor e as noções enraizadas de texto, autor ou obra. Porém, a literatura eletrónica não é um conjunto de desafios colocados aos estudos literários, nem o representante do meio digital que ameaça colonizar o território impresso (ambos os formatos tecem um diálogo entre si, basta escutar com atenção). As potencialidades do meio estão a ser testadas. Isto oferece à literatura eletrónica um caráter experimental (ou latente). Textos que abarcam diversos modos de leitura estão a ser produzidos. Eles são objetos singulares compostos por filamentos preciosos. Várias instituições estão envolvidas na conservação e promoção desta forma literária, pelo que esta encontra-se em pleno desenvolvimento. Só que o solo onde germina é irregular. A literatura eletrónica exige que nos adaptemos a novas configurações do terreno e que reflitamos sobre as nossas próprias formas de abordagem.

Nesta sessão [Workshop “Figuras da Ficção”, 20 de maio de 2015], a descrição da personagem em meio digital deu lugar a um debate sobre a influência do meio, mas também a uma análise de conceitos como “literário” ou “cânone”. Várias questões colocadas aos estudos literários surgiram ao longo do nosso debate. A utilização do computador como superfície de inscrição tem vindo a reacender diversas discussões dentro da literatura, mas também tem vindo a produzir um conjunto de artefactos e procedimentos que merecem a nossa atenção. Eles não são destroços trazidos à costa por uma vaga digital. São reflexos das nossas ambições e ansiedades. Parecem surgir entre fendas ou em zonas limite mas, simultaneamente, demonstram que as barreiras entre formas de representação terão sido inutilizadas. No  Workshop “Figuras da Ficção” fizemos uma incursão em diversos espaços, onde personagens em estado latente emergiram, ainda que por breves instantes.

Obrigado a todos os figurantes por participarem nesta pequena viagem.

Daniela Côrtes Maduro

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2 comentários

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2 responses to “Personagens em estado latente

  1. Maria Alcina do Carmo Dias

    “Porém, a literatura eletrónica não é um conjunto de desafios colocados aos estudos literários, nem o representante do meio digital que ameaça colonizar o território impresso (ambos os formatos tecem um diálogo entre si, basta escutar com atenção).”
    Um dos aspetos relevantes neste texto, que corroboro, num momento em que muitos vaticinam a morte do livro em suporte de papel, o modo ‘tradicional’ de leitura. O que se ergue no horizonte são diferentes formas de ler, passíveis de serem vertidas numa poética de conflito que traça caminhos de grandeza, porque mais amplos, mais plurais. A obra literária não é estática, não fica concluída. A literatura não é apenas linguagem. A originalidade que lhe é intrínseca, será criativamente desviante em relação ao que a antecede,permitirá o reler diverso.
    O que é o cânone, o que faz com que com que uma obra se torne canónica? O que é ser leitor? Falar sobre o cânone num modo simplista remeterá porventura para a originalidade, para o modo peculiar do bem pensar, do bem escrever, que por estas mesmas razões nos interpelam, rasgam outro olhar, sentir e pensar, furtando-se a uma mera passagem de testemunho. Tais contornos, no meu entender, não constituem apanágio da literatura impressa ou eletrónica, ao invés, poder-se-ão alimentar mutuamente. Ao leitor caberá essa escolha, ou abraçar ambas, pois é o do desvendamento do mundo, da humanidade, de si, que se trata.

    Um putativo perigo se poderá descortinar na abundância: o de se confundir informação com que conhecimento, de se ficar pela informação. Que se transforme num criativo desafio, obreiro de um mundo melhor…

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