Figuras fantásticas

Duas perguntas inevitáveis. Primeira: quem são as personagens do fantástico que nesta ocorrência me interessam? Segunda e mais importante: como se processa a sua figuração? Respondo à primeira pelo critério do menor denominador comum e recorrendo à ajuda dos autores que se consagraram à matéria. Até mesmo à de Todorov, apesar das reservas que, tal como a outros, me merece a sua Introduction à la littérature  fantastique.  

Parece-me pertinente, neste momento, notar que aquele grupo seleto induz uma visão por assim dizer canónica e literária do “léxico” das figuras do fantástico, bem como da implícita gramática narrativa que as serve. Isto quer dizer que, com a entrada em cena de linguagens, de meios de comunicação, de impulsos criativos e de atitude recetivas menos convencionais, havemos de estar preparados para tudo. Penso em refigurações do fantástico relativamente ousadas e descanonizadoras, no cinema e na TV, na banda desenhada e nos jogos narrativos; e, lembrando um filme que fez história, Ghostbusters (1984), de Ivan Reitman, tenho em mente também a explosão dos efeitos especiais, depois incrementados com a ajuda do digital, tudo, por vezes, estrategicamente orientado para adolescentes pouco assustadiços. Esses novos públicos, dilatados pela adesão de adultos infantilizados (uma espécie atualmente em rápida expansão), já não tremem, antes se divertem, com a voz cava dos fantasmas e com os feitiços de Harry Potter. Se os resultados não são radicalmente cómicos, para lá caminham.   

No capítulo em que anuncia os temas do fantástico, o autor não pode deixar de falar de personagens (mas sem reconhecer essa “concessão”!), coisa rara em quem, no tempo do estruturalismo, tinha delas uma perceção quase só funcionalista. E assim, apoiando-se em Peter Penzoldt, em Louis Vax e em Roger Caillois, Todorov abre caminho para a identificação de figuras do fantástico suportadas por uma larga tradição literária e artística: o diabo, a alma penada, o fantasma, o espectro, a morte, o vampiro, o autómato, o lobisomem, o feiticeiro (e a feiticeira, pois então!). Por agora, chega, mas a lista poderia ir mais longe e integrar bruxos e  bruxas, incluindo as do Halloween, tão banalizadas, em regime de franchising, que já não  impressionam ninguém.

Acresce a isto, como bem se sabe, que o jovem estudante de Hogwarts transpôs, num verdadeiro e, para ele, trivial passe de mágica, as fronteiras do mundo ficcional literário, como se tal coisa ainda fizesse falta à multimilionária J. K. Rowling. Mais: a sua criatura, em poucos anos objeto de incontáveis refigurações, antes de tudo cinematográficas e, em geral, transartísticas, alimenta o mundo da fan fiction e massifica o fantástico à escala planetária. Nesse mundo fantasticamente comercial, já analisado no âmbito dos estudos narrativos (veja-se o volume organizado por Hellekson e Busse, de 2006), multiplicam-se os gadgets, os parques temáticos, as indumentárias (as fantasias, como dizemos), as performances, os websites, os clubes de devotos, os glossários, as experiências imersivas e tudo o mais que confirma o que tenho vindo a sublinhar: o impulso de refiguração (que neste caso parece inesgotável) das figuras do fantástico. Um bom negócio, em resumo. (“Representações fantásticas: figuras, figurações, refigurações”; Congresso “Visões do fantástico: fantástico e humor”, Univ. do Minho, 26 a 28.6.2024).


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